segunda-feira, 27 de junho de 2011

EPILEPSIA


 


HISTORICO


 


A epilepsia foi vista em animais filogeneticamente mais antigos que o homem, sugerindo que já havia animais epilépticos antes que o homem surgisse. As mais remotas descrições da epilepsia, porém, são dos egípcios e dos sumérios e datam de 3500 a.C. Por volta de 1.700 a.C., o principal documento que trata de neurologia no Egito Antigo, o Papiro de Smith, cita possíveis crises convulsivas nos trechos que descrevem ferimentos na cabeça. Na Suméria (Mesopotânia), nessa mesma época, vários textos, em acadiano, registram muito bem crises epilépticas. Todas as idéias relacionadas à medicina vinculavam-se a fenômenos sobrenaturais, magia e maldições. No século VI, a medicina grega avançou significativamente na compreensão das doenças, entre elas a epilepsia. Por volta de 400 a.C., Hipócrates, o pai da medicina, afirmou que a causa da epilepsia não estava em espíritos malignos, e sim no cérebro, tentando desfazer mitos sobrenaturais.


Os escritos da época foram os primeiros a atribuir causas físicas para as doenças e afecções neurológicas, e identificaram o cérebro como o local chave para o entendimento do comportamento humano.


Remédios, dieta e hábitos saudáveis - e não sacrifícios aos deuses, rezas ou magias - poderiam tratar os epilépticos. Para fazer o diagnóstico, baseavam-se na observação cuidadosa dos sinais e sintomas do doente. Há descrições, por exemplo, de auras visuais, auditivas e vegetativas. O termo "aura" (que em grego significa "brisa") designa a sensação que ocorre no início da crise e se originou na história de um professor de Galeno, Pelops. Ao perguntar a um epiléptico o que ele havia sentido durante a crise, este não soube responder, mas um amigo, que presenciara o acontecimento, disse que era como se uma "brisa" tivesse passado por ele (referia-se possivelmente ao olhar de surpresa e à expressão facial que com freqüência está presente no início das crises). No final do século XIX e no início do século XX, o estudo das auras se mostrou importante para a localização da região do cérebro geradora de crises.


Diversos pesquisadores estudaram a epilepsia, destacando-se Areteus da Capadocia, Galeno de Pergamo (a maior autoridade medica juntamente com Hipócrates durante o domínio do Império Romano no século II d.C.) e Celso Aureliano. Na Alexandria, Erasistrato e Herófilo fizeram dissecções humanas para estudo. Na Renascença e com a Revolução Científica, a anatomia fundamental para o conhecimento do corpo humano passou a ser realmente estudada, com dissecções e observações meticulosas das estruturas. O livro de anatomia "De Humanis Corpora Fabrica", de Andréa de Vesalius, concluído em 1543, é uma das obras mais importantes da história da Medicina. René Descartes abriu as portas para a pesquisa neurofisiológica experimental. Fez vários estudos fisiológicos e anatômicos com animais, investigando exaustivamente o sistema nervoso. Ele afirmava que a epilepsia originava-se no cérebro. Na Idade Média, a epilepsia foi relacionada com doença mental e contagiosa--tabus que persistem até hoje, devido à falta de divulgação de informações corretas. Naquela época, freqüentemente tentava-se curar o mal por meios religiosos.


 O neurologista John Hughlings Jackson afirmou, no século XVIII, que a disfunção era causada por uma descarga anormal das células nervosas. A Bíblia também cita a epilepsia: em Mateus 17:14-18, Marcos 9:17-27 e Lucas 9:38-42, relata-se o caso de um jovem epiléptico levado a Jesus em busca de cura. Dados históricos indicam que as seguintes personalidades podem ter sido epilépticas: Francesco Petrarch, Charles Dickens, Molière, Blaise Pascal, Nicolo Paganini, Lord Byron, Feodor Mykhailovisch Dostoievsky, Gustave Flaubert, Algernon Charles Gogh, Alfred Nobel, William Morris, Pitágoras, Empedocies, Sócrates, Torquato Tasso, Isaac Newton, Jonathan Swift, Sir Walter Scott, Dante, Emmanuel Swedenborg, George Frederick Handel, Peter Ilich Tchaikovsky, Robet Schumann, Ludwig van Beethoven, Samuel Jahnson, Leo Tolstoy, Guy de Maupassant, Percy Bysshe Shelley, Truman Capote e Michael Wilding


Nas últimas décadas, as Epilepsias passaram a ser consideradas, em todos os países, um verdadeiro problema de saúde pública, pois, além de seus aspectos puramente médicos, envolvem também a compreensão dos problemas psicossociais que afligem os portadores de epilepsia, seus familiares e os grupos sociais com os quais esses pacientes interagem. O lançamento mundial da campanha Epilepsia: saindo da obscuridade, em 1997, feita em conjunto pela International League Against Epilepsy, pelo International Bureau for Epilepsy e pela Organização Mundial de Saúde, e que foi oficialmente apoiada pela Liga Brasileira de Epilepsia em 1998, tem como objetivo melhorar a qualidade de vida dos pacientes portadores de epilepsia através da educação profissional e pública.


 


 


 


CONCEITO


Não há uma definição completamente satisfatória de epilepsia. Epilepsia não é, naturalmente, uma doença específica, ou mesmo uma única síndrome. Sob essa denominação, compreende-se ampla categoria de sintomas complexos decorrentes de funções cerebrais alteradas, que podem ser secundárias a um grande número de processos patológicos.


Admite-se epilepsia como um grupo de doenças que têm em comum crises epilépticas que recorrem na ausência de condição tóxico-metabólica ou febril. Crises epilépticas são eventos clínicos que refletem disfunção temporária de um conjunto de neurônios de parte do encéfalo (crises focais) ou de área mais extensa envolvendo os dois hemisférios cerebrais (crises generalizadas). A crise epiléptica é causada por descarga elétrica anormal excessiva e transitória das células nervosas, decorrente de correntes elétricas que são fruto da movimentação iônica através da membrana celular. Crises epilépticas são sintomas comuns de doenças neurológicas agudas (tais como meningoencefalite, trauma cranioencefálico, doenças cerebrovasculares) ou doenças clínicas (tais como anóxia, estado hipoglicêmico, insuficiência renal e hepática). Essas circunstâncias agudas, entretanto, não constituem epilepsia.


 


FATORES DESENCADEANTES


Em alguns pacientes, as crises são desencadeadas por luzes piscantes, certos tipos de ruídos, leitura prolongada, privação de sono, fadiga, uso de álcool, hipoglicemia (baixo nível de açúcar no sangue) etc. Álcool, determinados medicamentos ou ingredientes alimentares podem interagir com as drogas antiepilépticas e precipitar crises.


 


MANIFESTAÇÕES E SINTOMAS


A epilepsia é caracterizada por crises epilépticas repetidas e não é contagiosa. Às vezes, a pessoa com epilepsia perde a consciência, mas às vezes experimenta apenas pequenos movimentos corporais ou sentimentos estranhos. Porém, sintomas menores não significam que a crise seja de menor importância. Se as alterações epilépticas ficam restritas a uma parte do cérebro, a crise chama-se parcial; se o cérebro inteiro está envolvido, chama-se generalizada. Crises parciais simples não ocasionam a perda da consciência e caracterizam-se por distorções na percepção auditiva ou visual, desconforto estomacal, sensação súbita de medo e/ou movimentos estranhos de uma parte do corpo. Se uma crise parcial complexa ocorre a seguir, essas sensações são denominadas "aura". Crises parciais complexas são crises que, como as parciais simples, iniciam-se em um foco determinado no cérebro, mas espalham-se para outras áreas, causando perturbação da consciência. A pessoa aparenta estar confusa e pode caminhar sem rumo, falar sem coerência, salivar em excesso, morder a língua e realizar automatismos, como puxar a roupa ou virar a cabeça de um lado para outro repetidas vezes. Crises de ausência constituem-se por lapsos de consciência que, em geral, duram de cinco a 15 segundos. O paciente fica olhando para o nada e pode virar os olhos, embora seja capaz de retomar normalmente sua atividade depois do episódio. Essas crises não são tipicamente precedidas por aura e costumam ocorrer na infância, desaparecendo por volta da adolescência.


Crises tônico-clônicas são convulsões generalizadas, com perda de consciência, que envolvem duas fases: na fase tônica, o corpo da pessoa torna-se rígido e ela cai. Na fase clônica, as extremidades do corpo podem contrair-se e tremer. A consciência é recuperada aos poucos. Apesar de ser o tipo mais óbvio e aparente de epilepsia, não é o mais comum. Existem, ainda, várias outras manifestações de epilepsia.


 


O QUE FAZER E O NÃO FAZER QUANDO ALGUÉM TEM UMA CRISE


Mantenha-se calmo e procure acalmar os demais. Ponha algo macio sob a cabeça do paciente. Remova da área objetos perigosos com os quais a pessoa eventualmente possa se ferir. Caso o paciente esteja usando gravata, afrouxe-a. Faça o mesmo com o colarinho da camisa. Deixe seu pescoço livre de qualque coisa que o incomode. Mexa a cabeça dele para o lado para que a saliva flua e não dificulte a respiração. Fique a seu lado até que sua respiração volte ao normal e ele se levante. Leve-o para casa, caso ele não esteja seguro de onde se encontra. Algumas pessoas ficam confusas após terem sofrido um ataque. Se você tem certeza de que a pessoa sofre de epilepsia e que o ataque não vai durar mais do que poucos minutos, é desnecessário chamar uma ambulância. Caso, porém, o ataque se prolongue indefinidamente, seja seguido por outros, ou a pessoa não volte a si, peça ajuda. Se a pessoa for diabética, estiver grávida, machucar-se ou estiver doente durante o ataque, chame uma ambulância. Não introduza nada em sua boca. Não prenda sua língua com colher ou outro objeto semelhante (não existe perigo algum do paciente engolir a língua). Não tente fazê-lo voltar a si lançando-lhe água ou obrigando-o a tomá-la. Não o agarre na tentativa de mantê-lo quieto.


 


DIAGNÓSTICO


O diagnóstico da epilepsia é clínico, ou seja, não se apóia exclusivamente em exames físicos. O neurologista baseia-se na descrição do que acontece com o paciente antes, durante e depois de uma crise. Se o paciente não lembra, as pessoas que acompanharam o episódio são testemunhas úteis. Além dos exames neurológicos de rotina, um eletrencefalograma (EEG) pode reforçar o diagnóstico, ajudar na classificação da epilepsia e investigar a existência de uma lesão cerebral. No EEG, eletrodos fixados no couro cabeludo registram e amplificam a atividade cerebral. Não há passagem de corrente elétrica. Hiperpnéia e fotoestimulação podem mostrar anomalias nas ondas cerebrais e, por isso, costumam integrar o exame. Na primeira, o paciente respira fundo e simula estar cansado; na segunda, é estimulado por algumas freqüências de luz. O neurologista poderá solicitar, ainda, o exame durante o sono, com privação de sono ou com monitoramento 24h. Entretanto, um resultado normal no EEG não descarta a epilepsia. As alterações ocorrem, por vezes, tão no interior do cérebro, que não são captadas; é possível também que nenhuma alteração tenha ocorrido no momento do exame. Outros exames comumente solicitados na investigação da epilepsia são tomografia computadorizada e ressonância magnética, principalmente para verificar se a epilepsia está ligada a um tumor ou a outra lesão cerebral.


 


Morte Súbita


Pessoas com epilepsia parecem ter um risco aumentado para morte súbita. O risco de morte súbita na população em geral é da ordem de 1 a 2 por 10.000 pessoas por ano. O risco de populações de pessoas com epilepsia (com grande proporção de crises infreqüentes) é de 3 a 15 por 10.000 pessoas por ano. Por outro lado, o risco de populações de pessoas com epilepsia de clínicas especializadas é da ordem de 20-40/10.000 por ano; entre pacientes encaminhados a clínicas de epilepsia é de 50-60/10.000 por ano; entre candidatos cirúrgicos é de 90/10.000 por ano e de pessoas que falharam no tratamento cirúrgico para epilepsia é de 150/10.000 por ano de seguimento. Embora esses dados sugiram que o risco de morte súbita esteja relacionado com a gravidade da epilepsia, parece que a falta de controle das crises ou fatores a ela relacionados estejam mais ligados ao risco de morte súbita.


 


FALSAS CRISES


Tanto pessoas que têm quanto pessoas que não têm epilepsia podem sofrer ataques desencadeados por um desejo consciente ou inconsciente de mais atenção e cuidados. Sob stress, uma respiração rápida ocasiona a produção de dióxido de carbono e muda a química corporal, podendo causar sintomas semelhantes a determinados tipos de crises. Hipoglicemia, abuso de drogas e febre, por exemplo, também podem ocasionar crises.


 


ESTADOS DE CHOQUE


 


O choque é um estado de hipoperfusão tecidular. Independentemente da causa, condiciona um desequilíbrio entre o transporte e as necessidades de oxigénio (O2) e substratos energéticos, o qual pode gerar sofrimento e morte celulares. A própria lesão celular induz uma resposta inflamatória que, alterando as características funcionais e estruturais da microcirculação, agrava ainda mais a hipoperfusão. Gera-se assim um ciclo vicioso que, se não for interrompido, pode levar à falência de múltiplos órgãos e, eventualmente, à morte.


As manifestações clínicas do choque resultam, por um lado, da resposta neuroendócrina à hipoperfusão, e, por outro, da disfunção orgânica induzida pela lesão celular. Deste modo, o choque caracteriza-se clinicamente pela combinação de hipotensão (PAM<60 mmHg), taquicardia, taquipneia, hipersudorese e sinais de hipoperfusão periférica como sejam a palidez, a cianose, extremidades frias(1) e úmidas, oligúria, acidose metabólica, alterações sensoriais e do estado de consciência.


Vários esquemas de classificação de choque foram propostos, com o intuito de


sistematizar os processos fisiopatológicos subjacentes que, no entanto, se revelam aparentemente diferentes. Atualmente, o mais aceito é aquele que distingue quatro tipos de choque: o hipovolêmico, o cardiogênico, o obstrutivo e o distributivo. No entanto, convém lembrar que nenhum esquema de classificação é completamente satisfatório, já que é frequente a combinação de duas ou mais causas de choque (choque combinado) e que mais importante que classificar o choque é compreender a sua patofisiologia.


 


(1)     No Choque séptico, a vasodilatação predomina, pelo que os membros se apresentam quentes.


 


RESPOSTA ORGÂNICA À HIPOPERFUSÃO


 


A perfusão adequada dos tecidos implica a integridade estrutural e funcional dos três constituintes básicos do sistema cardiovascular: coração (a bomba), vasos (o continente) e sangue (o conteúdo). Assim, alterações num ou mais destes constituintes representam, por um lado, as possíveis causas de choque, e, por outro, a resposta do organismo ao mesmo. Esta resposta envolve inicialmente mecanismos compensatórios e nalgumas situações mecanismos descompensatórios podem sobrevir mais tarde.


 


1.    MECANISMOS COMPENSATÓRIOS


 


Em geral, as diferentes formas de choque desencadeiam uma série de mecanismos que visam atenuar/reverter o estado de hipoperfusão e, deste modo, proteger os órgãos da subsequente disfunção. Esses mecanismos consistem essencialmente numa ativação neuroendócrina cujo padrão é aquele que ocorre numa situação de stress. Sendo assim, há participação do sistema adrenérgico como resposta imediata, seguindo-se a activação do córtex da supra-renal com libertação de cortisol e do sistema renina-angiotensina-aldosterona e a libertação da hormona antidiurética pelo eixo hipotâlamo-hipofisário.


 


 


2. MECANISMOS DECOMPENSATÓRIOS


Estes mecanismos estão ainda mal esclarecidos mas sabe-se que podem estabelecer-se mesmo quando o doente parece relativamente estável. Parecem resultar do choque grave ou persistente, quando a intensa vasoconstrição mantida pelos mecanismos compensatórios provoca perfusão inadequada de vários órgãos (que não o coração e o SNC), causando a sua disfunção. No agravamento do choque têm particular importância a disfunção do trato gastrointestinal (TGI), do fígado, do rim e as alterações inflamatórias e metabólicas multiorgânicas. Todos eles, alterando o DC e/ou a RVP, acabam por reduzir ainda mais a pressão arterial, agravando a hipoperfusão. De facto, ao condicionarem uma acentuação da queda da pressão arterial, são responsáveis pelo agravamento do choque, situação que pode chegar ao estado da irreversibilidade.


A hipoperfusão renal prolongada pode condicionar o desenvolvimento de insuficiência renal aguda. Esta caracteriza-se por desequilíbrios electrolíticos e metabólicos que podem originar arritmias e insuficiência cardíacas, redução do tônus venosos (diminuindo a pré-carga) e do tônus arteriolar (reduzindo a RVP). Este último aspecto é também responsável pelo desenvolvimento de edema, já que condiciona um aumento da pressão hidrostática capilar.


O TGI e o fígado possuem uma ação sinérgica no agravamento do choque. A hipoperfusão entérica ocasiona a perda da sua função de barreira o que, associado à proliferação da flora intestinal, favorece a passagem de bactérias e de toxinas para o sistema porta. Por sua vez, a hipoperfusão hepática justifica a perda da sua função de órgão depurador. Em conjunto, a disfunção destes dois órgãos condiciona a acumulação de bactérias e toxinas na corrente sistêmica, podendo eventualmente levar a um quadro de sepse.


As alterações que ocorrem a nível multiorgânico e que contribuem para a acentuação da hipoperfusão são fundamentalmente duas: produção de metabólicos ácidos e libertação de mediadores inflamatórios. A hipóxia mantida condiciona a inibição da fosforilação oxidativa, favorecendo-se a glicólise anaeróbia, da qual resulta a formação de metabólitos ácidos, como o ácido láctico. A consequente acidose metabólica provoca diminuição da contractilidade cardíaca e dilatação arteriolar.


A libertação de mediadores inflamatórios pode ser explicada pela acumulação de toxinas e bactérias na corrente sanguínea, secundária à falência do sistema hepato-intestinal, ou pela lesão celular induzida pela própria hipoperfusão. No agravamento do choque, os efeitos da libertação de mediadores inflamatórios resultam sobretudo da alteração das características funcionais e estruturais da microcirculação: vasodilatação, aumento da permeabilidade vascular e recrutamento de células inflamatórias (neutrófilos, macrófagos e plaquetas). A vasodilatação provoca diminuição da RVP, enquanto que o aumento da permeabilidade vascular condiciona extravasamento de líquido, com a consequente diminuição do volume circulante (e da pré-carga) e aumento do volume intersticial. Este último aspecto repercute-se na dificuldade da difusão de oxigênio e nutrientes entre o sangue e as células. Por seu lado, o recrutamento de células inflamatórias parece fortemente implicado na gênese da lesão celular. De fato, a marginação dos neutrófilos ativados na microcirculação é um achado patológico comum no choque, provocando lesão secundária à libertação de radicais livres de oxigénio e proteases potencialmente citotóxicos. Na sepse, também o coração é afetado diretamente, através da libertação endógena de um fator depressor do miocárdio.


Para além de contribuir para o agravamento do choque e da lesão, a libertação de fatores inflamatórios pode também ser a causa primária do aparecimento de choque (nomeadamente os choques séptico e anafilático, como será abordado mais à frente). Os mecanismos envolvidos no desencadeamento destas formas de choque são os mesmos que aqueles que participam no agravamento do choque com outras causas.


Para finalizar, o despoletar de mecanismos descompensatórios está normalmente associado a um estado de irreversibilidade, até porque, geralmente coincide com um novo padrão de ativação neuroendócrina (estimulação do parassimpático e inibição do simpático).


 


LESÃO CELULAR E FALÊNCIA MULTIORGÂNICA


A consequência última da hipoperfusão é a lesão celular (sofrimento e/ou morte) e a disfunção orgânica. A lesão celular está relacionada com a hipóxia (déficit de aporte de O2) que a hipoperfusão provoca. Os mecanismos subjacentes à lesão celular induzida pela hipóxia são fundamentalmente dois: disfunção mitocondrial (com desaclopamento da fosforilação oxidativa) e lesão das membranas.


A nível celular, a primeira consequência da hipóxia é a redução da formação de ATP pelas mitocôndrias, da qual resultam efeitos difusos sobre vários sistemas da célula, em particular, a falência da bomba de Na+ e a estimulação da glicólise anaeróbia. Por conseguinte, dá-se acumulação intracelular de Na+, perda de K+, com consequente hiperpolarização da membrana e ganho isosmótico de água (edema celular). Pela glicólise anaeróbia ocorre formação de produtos ácidos, como o ácido láctico, os quais reduzem o pH intracelular e esta acidose metabólica, condicionando vasodilatação, é particularmente importante nos estados graves/avançados do choque.


As alterações atrás enumeradas são reversíveis se o choque for tratado em tempo útil e a oxigenação restabelecida. Entretanto, se a hipoperfusão persistir, pode estabelecer-se lesão irreversível, cujo principal alvo é a perda de integridade morfofuncional da membrana celular.


As possíveis causas desta disfuncionalidade são a perda de fosfolípidos da membrana (devido à ativação de fosfolipases pelo aumento da [Ca2+] citosólico secundária à sua mobilização a partir dos reservatórios intracelulares induzida pela isquemia), alterações do citoesqueleto (pelo edema celular e ativação de proteases induzidas pelo aumento do cálcio citosólico), os produtos da degradação dos lípidos (resultantes da degradação de fosfolípidos, com efeito detergente) e a produção de radicais livres de oxigênio. Estes últimos são moléculas de oxigênio parcialmente reduzidas, altamente tóxicas e que causam lesão das membranas e outros constituintes celulares. A sua libertação está aumentada em tecidos isquémicos após a restauração do fluxo sanguíneo, originando a chamada lesão de reperfusão. Parecem ser produzidas principalmente por células inflamatórias que infiltram o local da isquemia durante a reperfusão. Todos os mecanismos citados concorrem, em última análise, para a perda da integridade da membrana. Uma das implicações deste fato é o influxo de Ca2+, o qual se encontra fortemente relacionado com alterações responsáveis pela irreversibilidade da lesão celular: envenenamento mitocondrial, inibição de enzimas celulares e desnaturação proteica.


Quando extensa, esta lesão celular pode condicionar a perda da função do órgão como um todo. Apesar de estar subjacente a um atingimento multiorgânico, alguns órgãos são mais susceptíveis (Cf. Tabela 1). No caso concreto do SNC, ele é incapaz de autoregular o fluxo sanguíneo quando a PAM cai para valores inferiores a 60 mmHg. A resultante isquemia provoca uma queda do nível de consciência do doente, que pode chegar ao estado de coma. A disfunção pulmonar aguda, por sua vez, é frequente, cursando com perturbação das trocas gasosas, hipoxemia, diminuição da complacência pulmonar e aumento do trabalho respiratório. Pode também resultar em exsudação de fluido contendo proteínas para o espaço alveolar (síndrome da dificuldade respiratória do adulto - SDRA). A insuficiência renal e a disfunção gastrointestinal são comuns e manifestam-se como íleo paralítico, gastrite, colecistite aguda alitiásica. A disfunção hepática é muitas vezes evidente, com hiperbilirrubinémia e elevação das transaminases e desidrogenase láctica. Outros sistemas frequentemente afetados são o hematológico (trombocitopenia e coagulação intravascular disseminada - CID) e o imune (disfunção dos macrófagos, linfócitos T e B).


 


 


CLASSIFICAÇÃO FISIOPATOLÓGICA DO CHOQUE


 


1. CHOQUE HIPOVOLÉMICO


O choque hipovolémico é o tipo mais frequente de choque, podendo ser subsequente a hemorragia (perda da massa eritrocitária e de plasma) ou a perda plasmática isolada (como sucede no sequestro de liquido extravascular, nas perdas pelo trato gastrointestinal e urinário ou nas perdas insensíveis). A sintomatologia destas duas situações é clinicamente sobreponível, embora no segundo caso o quadro possa instalar-se de forma mais insidiosa. Os sintomas variam de acordo com a magnitude da perda e, portanto, com a gravidade da situação (tabela 2).



A resposta fisiológica compensadora à hipovolêmia visa assegurar sobretudo a perfusão dos órgãos nobres, nomeadamente o SNC e o coração. Sendo assim, e como referido anteriormente, ocorre ativação do sistema adrenérgico, hiperventilação, ativação da suprarenal (com libertação de cortisol), redução do débito urinário (pelo SRAA) e recrutamento dos líquidos intersticiais e intracelulares. No que diz respeito aos parâmetros do hemograma é importante ter presente que após uma hemorragia aguda, os valores da hemoglobina e do hematócrito podem não estar alterados até que ocorra retenção hídrica ou sejam perfundidos fluidos. Por conseguinte, perante um valor do hematócrito dentro dos limites da normalidade não se pode excluir uma perda hemática significativa. Em contrapartida, se for uma situação de perda plasmática, pode mesmo haver hemoconcentração.


O diagnóstico deste tipo de choque pode ser rápido e fácil se o doente apresentar sinais clínicos de instabilidade hemodinâmica e se a fonte da perda de volume for evidente. No entanto, há situações em que esta fonte de perda é oculta, pelo que o diagnóstico se prefigura mais difícil. O diagnóstico diferencial com o choque cardiogênico é outro aspecto importante uma vez que ambos cursam com hiperatividade simpática, aumento das RVP e diminuição do DC, mas têm abordagens terapêuticas díspares.


 


2. CHOQUE CARDIOGÊNICO


O choque cardiogênico é um estado de baixo débito secundário a patologia cardíaca, condicionando uma inadequada perfusão tecidular. Pode ser secundário a patologias que provocam falência da bomba- como o enfarte agudo do miocárdio (IAM), a miocardite aguda ou descompensação da insuficiência cardíaca (IC)- ou a causas mecânicas que comprometem a função ventricular- doença valvular aguda, ruptura de cordas tendinosas ou do septo inter-ventricular. A causa mais frequente é o IAM e a mortalidade, apesar de adequado tratamento, é elevada, rondando os 70%.


Para classificar o choque como sendo cardiogênico devem estar reunidos critérios clínicos e hemodinâmicos que caracterizam esta etiologia.


Para o diagnóstico clínico, para além da hipotensão, devem estar presentes sinais de hipoperfusão tecidular como a oligúria, as extremidades frias, cianose e alterações da consciência. Estes sinais geralmente persistem apesar da tentativa de correcção de outros possíveis fatores precipitantes reversíveis (como a hipovolêmia, arritmias, hipóxia e acidose).


Os critérios hemodinâmicos do choque cardiogênico são a hipotensão sustentada (TA sistólica < 90 mmHg durante pelo menos 30 minutos) e o índice cardíaco diminuído (< 1,8 l/min/m2) na presença de pressão de encravamento pulmonar (PCWP) elevada (> 18 mmHg).


O choque cardiogênico secundário a isquemia, por ser o mais frequente, será aquele cuja fisiopatologia será abordada em seguida.


 


Fisiopatologia do choque cardiogênico pós-IAM


No IAM a redução da perfusão coronária e o aumento do consumo miocárdico de O2 estão envolvidos num ciclo vicioso que induz progressivamente mais isquemia e morte celular, amplificando a área de lesão inicial. Estudos de autópsia mostraram que, para que ocorra choque cardiogênico, geralmente são necessárias perdas por necrose de mais de 40% do miocárdio ventricular .


No choque cardiogénico existe disfunção ventricular sistólica e diastólica.


A função diastólica está comprometida pela redução da complacência ventricular induzida pela isquemia, o que se traduz por aumento das pressões de enchimento do VE com a possibilidade de edema pulmonar e hipóxia (mais uma vez agravando a isquemia em curso).


A disfunção sistólica com diminuição do débito cardíaco é responsável por uma


situação de hipoperfusão tecidular com hipóxia celular, a qual condiciona acidose intracelular por favorecer a glicólise anaeróbica. A menor produção de energia por estas vias metabólicas alternativas vai levar à falência dos sistemas de transporte contra-gradiente da membrana célula (ex. a bomba de Na+) com diminuição do gradiente transmembranar. Assim, vai haver acumulação intracelular de ions Na+ e Ca2+, com o consequente edema celular.


Como atrás referido, quando a isquemia é prolongada estas alterações tornam-se irreversíveis e há necrose celular e, por ação dos mediadores inflamatórios e stress oxidativo uma onda de apoptose (morte celular programada) é criada na área peri-enfarte, aumentando a extensão da perda de miócitos.


Estas alterações celulares vão ter uma tradução hemodinâmica com desvio para a direita das curvas pressão-volume devido à disfunção sistólica. Há uma redução do DC com aumento do volume telediastólico do VE já que vai ser ejectado um menor volume em cada ciclo. Para compensar a redução do DC, a curva pressão-volume diastólica também se desloca para a direita com diminuição da complacência diastólica e aumento das pressões telediastólicas. A tentativa de manter o DC por este mecanismo tem como consequência um aumento das pressões de enchimento ventricular com aumento do consumo de O2 e edema pulmonar.


Existe portanto um ciclo vicioso em que a isquemia miocárdica é potenciada quer pela redução da perfusão miocárdica secundária à hipotensão e taquicardia, quer pelas maiores pressões de enchimento com aumento do stress da parede e elevação do consumo de O2 .


A redução do DC desencadeia também respostas compensatórias com repercussões a nível sistémico. A ativação do sistema simpático, para além de aumentar a frequência cardíaca e a contractilidade miocárdica com aumento do consumo de O2, tem efeitos renais promovendo a retenção de água e sódio com aumento da pré-carga e das pressões telediastólicas do VE, favorecendo a congestão venosa pulmonar.


Também as alterações metabólicas secundárias à hipoperfusão, particularmente a acidose, induzem maior depressão miocárdica e perpetuam a situação de choque.


 


3. CHOQUE OBSTRUTIVO


Este tipo de choque engloba uma série de situações que provocam compressão ou obstrução do coração ou dos grandes vasos, com redução do DC (sem, no entanto, estar presente nenhuma doença primaria cardíaca) - choque cardiogênico compressivo.


Qualquer causa de aumento da pressão intratorácica (ex: pneumotórax hipertensivo, ventilação mecânica com pressões positivas) ou intrapericárdica (tamponamento cardíaco) pode, em condições extremas, levar à compressão das câmaras cardíacas e a um aumento das pressões telediastólicas, com redução significativa do DC e originando um estado de choque.


Também a embolia pulmonar, por provocar uma obstrução aguda à câmara de saída do VD e diminuição do enchimento do VE, leva a insuficiência cardíaca direita aguda e diminuição do DC, com possibilidade de choque.


 


4. CHOQUE DISTRIBUTIVO


O choque distributivo caracteriza-se por um inadequado fornecimento e extração de O2, subsequente a vasodilatação periférica, apesar do DC se encontrar normal ou aumentado.


Este aspecto tem particular interesse na medida em que a presença de uma saturação venosa mista de O2 normal pode não indicar uma perfusão periférica adequada e, apesar do DC estar normal ou aumentado, ele pode ser insuficiente para satisfazer as necessidades metabólicas totais.


Semiologicamente, os doentes apresentam-se hipotensos, taquicárdicos mas com as extremidades quentes devido à vasodilatação. Se o quadro se enxertar num contexto de choque séptico, pode haver igualmente febre, arrepios e o foco de infecção pode ser clinicamente evidente.


São várias as entidades englobadas sob a designação de choque distributivo,


nomeadamente: choque séptico, choque anafilático, choque neurogênico e insuficiência suprarenal (Síndrome de Addison).


 


 


4.1 Choque Séptico


O choque séptico resulta da resposta sistêmica a uma infecção grave. É uma situação mais frequente nos idosos, imunodeprimidos ou nos doentes sujeitos a procedimentos invasivos. As infecções gastrointestinais, urinárias e pulmonares são as mais comuns e a resposta global do organismo bem como o quadro sintomático são independentes do tipo de agente envolvido. As toxinas dos microrganismos conduzem à libertação de citocinas pelos macrófagos teciduais, incluindo a IL-1 e o FNTα e a síntese de NO pela NO-síntase induzível. Há, igualmente, aumento da expressão do fator tecidual e deposição de fibrina, podendo sobrevir coagulação intravascular disseminada. Pode haver também libertação endógena de um mediador designado por fator depressor do miocárdio (FDM), que deprime diretamente a atividade cardíaca.


Em termos hemodinâmicos, ocorrem dois padrões típicos de alterações no choque séptico: a resposta hiperdinâmica ou precoce e a resposta hipodinâmica ou tardia.


 


Resposta hiperdinâmica


Caracteriza-se por taquicardia, DC normal ou elevado, vasodilatação periférica, diminuição das resistências vasculares pulmonares, diminuição do fluxo visceral (por vasoconstrição esplâncnica) e aumento da capacitância venosa (o que diminui o retorno venoso). Os mediadores inflamatórios vão condicionar, também, aumento da permeabilidade vascular (com perda contínua do volume intravascular) e compromisso da contractilidade miocárdica.


Resposta hipodinâmica


À medida que a sepse evolui, instala-se a vasoconstrição e diminuição do DC, apesar da taquicardia (por disfunção VE). O doente torna-se taquipneico, febril, prostrado, com hipersudorese e os membros frios, cianóticos. A oligúria e insuficiência renal, bem como a hipotermia são outros eventos do quadro numa fase mais avançada.


 


4.2 Choque Anafilático


O choque anafilático ocorre quando um indivíduo entra em contacto com um antigénio para o qual está sensibilizado (microrganismo, alimento, fármaco). A reação alérgica cursa com libertação maciça de histamina, bradicinina, PGD2 e outros mediadores que condicionam uma intensa resposta vasodilatadora e perda da permeabilidade vascular.


 


 


4.3 Choque Neurogénico


O choque neurogénico instala-se na sequência de depressão central medicamentosa (ex. em anestesiologia) ou por traumatismo medular/crâneo-encefálico. Um dos mecanismos fisiopatológicos que parece estar implicado nesta situação é a lesão das fibras vasomotoras simpáticas. Este facto vai repercutir-se hemodinamicamente na dilatação das arteríolas (com redução da pós-carga) e das vénulas (com diminuição do retorno venoso e, por conseguinte, da


pré-carga) e, em ultima análise, compromisso do DC.


 


4.4 Choque por Insuficiência Supra-Renal


O choque que se instala na insuficiência supra-renal relaciona-se com a incapacidade do doente em produzir hormonas de stress, nomeadamente o cortisol. Caracteriza-se por redução da resistência vascular sistémica, do volume circulante e do DC. O diagnóstico definitivo pode ser estabelecido com o teste de estimulação com o ACTH.

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